segunda-feira, 25 de maio de 2009

Carta Aberta sobre desligamento da Clínica das Amendoeiras

Carta Aberta sobre nosso desligamento da Clínica das Amendoeiras

Há cerca de cinco anos, quando entramos na Clínica das Amendoeiras lá estavam internados 239 pacientes psiquiátricos e neurológicos. A circulação dos pacientes pela clínica era restrita aos lugares de tratamento, o tratamento psíquico era todo efetuado internamente e por uma equipe com orientação disciplinar psicopedagógica organicista; viviam super medicados; com contenções freqüentes e, muitas vezes, desassistidas.

A Clínica já se encontrava em situação precária, mas ainda não impeditivas para se manter funcionando. Apresentava um quadro de funcionários em quantidade condizente com a legislação vigente, havia roupas, comidas, medicamentos suficientes para prover os pacientes e alguns passeios e atividades.

Para imprimir uma nova direção clínica em comunhão com a reforma psiquiátrica e quebrar com a lógica manicomial, foram contratados psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, fonoaudiólogos, recém-saídos das residências de Saúde Mental, trabalhadores da rede pública e alguns de CAPS. Essa equipe foi construindo uma direção clínica preocupada em situar o paciente como sujeito cidadão de direitos e deveres, como também sujeito do inconsciente através da escuta de seu desejo, posição afinada com a clínica ampliada praticada na reforma psiquiátrica.

Desta forma alcançamos algumas metas às quais nos havíamos proposto.

— Supervisão clínica-instituciona l com discussão de caso para a construção do projeto terapêutico e condução do caso;

— Seminários internos para avaliação e propostas clínicas institucionais.

— 30 altas sendo que a maioria para retorno à família;

— Pesquisa e localização de familiares e trabalho terapêutico junto a eles.

—Discussão de caso com a equipe do serviço substitutivo de referência para o encaminhamento até a total absorção dos pacientes e familiares pelo serviço.

— Adoção de medicamentos de nova geração com menos efeitos colaterais;

— Diminuição do uso de neurolépticos e conseqüente diminuição de crises epilépticas com acidentes graves e mortes por TCE;

— Maior circulação dos pacientes pela clínica;

— Suspensão completa da contenção disciplinar e não assistida;— Controle dos casos de tuberculose pulmonar e escabiose;

— Participação da equipe nos fóruns da área;

— Atendimentos de pacientes da clínica em CAPS e oficinas terapêuticas e profissionalizantes da área;

— Criação de oficina de geração de renda na própria clínica;

—Regularização da documentação dos pacientes; obtenção do LOAS e agilização do pedido da bolsa desospitalização para os pacientes que obtiveram alta; obtenção do Rio-Card.

— Pedido de redução de um módulo de leitos em Abril de 2007 com diminuição para 120 pacientes. Diminuição concedida, mas o aumento da diária ainda não foi repassado;

—Pedido de redução de outro módulo em 2008 com redução para 80 leitos psiquiátricos (ainda em tramitação), com fechamento total de 80 leitos;

Com o passar do tempo a situação foi se agravando progressivamente. As dificuldades se refletiam diretamente sobre a qualidade da assistência e das condições de vida dos pacientes. Há cerca de cinco meses chegou a um nível insuportável. Começou a não ser mais possível a reposição de utensílios da clínica e objetos de utilização dos pacientes dentro do necessário (roupas, lençóis, colchões, material terapêutico, de limpeza e higiene). A miserialização da clínica atingiu os pacientes de uma forma que nos vimos obrigados a lançar mão dos benefícios dos pacientes para que lhes fossem garantidos a higiene, o cuidado pessoal, as atividades extra-muros e um pouco de conforto. Mesmo assim a situação foi piorando, a alimentação foi se tornando insuficiente para as necessidades nutr icionais diárias e a limpeza da clínica é precária. Não foi mais oferecido telefone para utilização da equipe, os contatos com familiares e serviços passaram a ser feitos as expensas dos próprios técnicos e ficamos sem carro para a locomoção dos pacientes. Para a diminuição de gasto a folha funcional foi reduzida com a demissão, em um primeiro momento de um dentista, a maioria dos cuidadores e técnicos de recreação e educação física e, nos últimos meses, com a saída de nove técnicos de nível superior da equipe técnica e cinco profissionais da enfermagem da clínica.

Fomos impedidos de continuar nosso trabalho e, mesmo tendo que sair da clínica, nos sentimos responsáveis pelos clientes que lá ficaram. Continuamos a não acreditar na internação ad aeternum e sim como um possível recurso terapêutico quando clinicamente determinada. Precisamos garantir que a desconstrução do aparato manicomial, transformando os manicômios em mau negócio, não rentável, com a baixa remuneração para as internações psiquiátricas seja acompanhada da construção e ampliação da rede alternativa e substitutiva ao manicômio. A miserialização do hospital psiquiátrico está penalizando os pacientes mais do que os próprios donos.

Ainda restam muitos pacientes internados que merecem atenção e cuidado. Pacientes com sintomatologia grave, neuróticos graves, pacientes que foram acometidos pela psicose quando eram crianças (psicose infantil), autistas, psicóticos, retardo mental, neuropatas; como também outros que se encontram em possibilidade para alocação em RTs de média complexidade imediatamente e quatro que estão prontos para morar em residências terapêuticas de baixa complexidade. Quase todos em situação de abandono ou com famílias psíquica ou socialmente muito comprometidas.

Informamos que ficaram internados na clínica um número elevado de pacientes com benefício do LOAS, que nós mesmos ajudamos a providenciar para que eles tivessem algum conforto. Alguns estão tutelados por profissional da clínica, outros por tutora judicial e outros não são curatelados.

As altas e as melhoras clínicas dos pacientes nos fazem acreditar que valeu a pena nossa permanência na Clínica durante esses quase cinco anos.

Entretanto, os loucos literalmente varridos para os manicômios merecem tratamento. O tempo não para, não espera pela velocidade das ações desinstitucionalizantes das políticas públicas, a vida é breve. A espera pela desconstrução dos manicômios causa grande sofrimento aos pacientes internados em situação de abandono familiar, que, dela dependem, para saírem do confinamento por que passam.

Há muito ainda a ser feito no processo de desinstitucionalização da Clínica das Amendoeiras e, por essa razão, solicitamos que os pacientes que lá ficaram sejam atendidos em suas necessidades pelo SUS através das secretarias de saúde com projetos específicos em serviços substitutivos e ou alternativos para eles.

Eunice Valadares e Sandra Autuori

terça-feira, 19 de maio de 2009

Carta aos Senadores. Audência pública no Senado 19/05

Exmos Senadores


A estratégia que está sendo utilizada para desmerecer as Políticas de Sáude Mental defendidas pelo SUS é perversa e leviana. Nos últimos meses temos assistido em todo canto desse país, em notíciários veiculados na imprensa e pela internet, a divulgação de uma enormidade de "casos" de pacientes de saúde mental e de familiares que se sentem desassistidos em sua necessidade, com a intenção clara de desqualificar os avanços da Reforma Psiquiátrica, a lei 10 216, o SUS e também os novos serviços e dispositivos de atenção em saúde mental. Se utilizam de relatos de casos e situações que certamente são verdadeiros e acontecem (afinal não existe nenhum sistema perfeito) não para lutar por avanços nessa política, mas para difundir a idéia de que esses pacientes estariam melhores se os leitos nos hospitais psiquiátricos tivessem sido preservados, o que não é verdade. A história recente não nos deixa cair nesse engodo, pois a verdade é que os hospícios se transformaram em depósitos humanos e não em lugares de tratamento. A lógica do manicômio não trata, apenas "varre para debaixo do tapete". Portanto, o que vemos hoje exmos senadores, são apenas as vicissitudes e realidades vividas por quem sofre de doença mental que se hoje podem aparecer na mídia, anteriormente ficariam exilados e silenciados por traz dos muros dos manicômios. É claro que ainda não chegamos onde pensamos poder chegar, precisamos avançar muito, ampliar serviços, criar novos dispositivos, abrir o hospital geral para as enfermidades mentais, ampliar assistência, mas não retroceder, acreditando que um maior número de leitos em hospitais psiquiátricos melhora a qualidade do atendimento. Na verdade, esta não é nem uma particularidade da saúde mental, hoje sabe-se no mundo inteiro que avançar nas políticas de saúde não tem nada a ver com aumento do número de leitos hospitalares, a resposta está na prevenção, na atenção básica e nos serviços de base comunitária.


Sendo assim, fazemos um apelo aos senhores para que os avanços da Reforma Psiquiátrica seja garantido. Temos consciencia que nossa política atual tem lacunas, falhas e distorções mas estamos caminhando. Os hospitais psiquiátricos tiveram mais de 200 anos para se estabelecer e nos mostraram sua ineficiência, para não dizer sua desumanidade. O modelo que propomos ainda é uma criança, tem apenas 8 anos, se contamos como início a implantação da lei 10 216 de 2001. Essa criança precisa de atenção e zelo para que possa crescer de forma a alcançar todo o seu potencial e não ser desmerecida e enfraquecida.


Contamos com vosso apoio.

Rita de Cássia Araújo Almeida
Psicóloga
Psicanalista
Coordenadora do CAPS Casaberta de Lima Duarte/MG
Supervisora do CAPS ij de Juiz de Fora/MG

Carta aberta à Comissão de Assuntos Sociais

Exma. Sra.
Senadora Rosalba Ciarlini e
Exmos. Srs.
Senador Flavio Arns,
Senador Inácio Arruda e
Senador Augusto Botelho
Membros da Comissão de Assuntos Sociais
do Senado Federal.

Venho por meio deste expressar minha preocupação frente a um movimento que observo pelo menos desde 2006, e que nos últimos meses vem se acirrando intensamente, no sentido de difamar a política de atenção à saúde mental no Brasil, através especialmente dos meios de comunicação e congressos científicos (?) onde tem sido divulgadas grosseiras inverdades sobre a situação da assistência psiquiátrica brasileira.

Como médica psiquiatra, com experiência em atenção a pacientes psiquiátricos graves, psicóticos crônicos, egrressos de inúmeras (10, 20, 30 internações), gostaria de convidá-los a conhecerem os serviços criados a partir da nova legislação psiquiátrica brasileira.

Há inumeráveis serviços no Brasil a serem conhecidos para que se tenha uma visão realista da situação. Pessoalmente, convido-os a conhecerem o Centro de Atenção Psicossocial de Santa Cruz do Sul (RS) onde trabalhei por 12 anos, e conversarem com os familiares e usuários do serviço que lá frequentam e que, com base num cuidado intensivo, qualificado, preventivo e reabilitador, em âmbito ambulatorial, provocou uma mudança radical no curso de suas 4-5 internações por ano, permitindo-os estarem no convívio familiar há 8-10 anos sem necessitarem de internações psiquiátricas.

E se porventura um dia ainda precisarem, serão atendidos dignamente numa unidade psiquiátrica do hospital geral da cidade, numa internação breve.

O Hospital Psiquiátrico que os acolhia nos últimos 110 anos, a preços altos, foi desativado em 1999, sem que ocorresse nenhuma comoção na cidade pela sua falta, exceto aquela provinda de seus mantenedores.

Não está atualizado o psiquiatra que diz que pacientes graves tem que ser internados. Nossa clientela é essencialmente grave, e não podemos por isto, reduzir suas vidas a clausura dos hospitais.

Como médica filiada a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) é necessário esclarecer que esta não representa o pensamento e experiência dos psiquiatras do país.
Ao contrário, a ABP tem vinculado o movimento da reforma psiquiátrica a ideologias e a negação das doenças psíquicas que o próprio movimento não defende.

Respeitosamente, sinto-me na obrigação de contribuir com estas impressões (que certamente podem ser comprovadas in locu) frente a uma mobilização tendenciosa e aparentemente orquestrada que resiste a considerar todos os avanços alcançados nos últimos anos após a mudança de paradigma na atenção à saúde mental que a reforma psiquiátrica vem promovendo.

Martha Helena Oliveira Noal

Especialista em Psiquiatria pela ABP
Especialista em Humanização na Atenção e Gestão do SUS pela Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do RS e UNIJJUÍ.
Preceptora da Residência em Psiquiatria do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Maria (RS)
Presidente de Honra da Associação de Familiares, Amigos e Bipolares (AFAB)
Membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Transtornos Afetivos (ABRATA)
Sócia fundadora da ABRASME e ABTB (Associação Brasileira de Saúde Mental e Associação Brasileira de Transtorno Bipolar), sócia da Associação Brasileira de Psiquiatria.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Alô, alô Brasil!

Foto: Rogelio Casado - Congresso Brasileiro de CAPS - São Paulo-SP, 2004
A imagem acima é de 2004. Trata-se do I Congresso Brasileiro de CAPS. O evento serviu para discutir a experiência constituída nos serviços substitutivos ao manicômio por todo o país, ao longo de mais de 20 anos de reforma psiquiátrica. Ou seja, antes, durante e depois da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, que pôs fim a legislação dos anos 1930.

Em 2009, mais de 500 militantes estão articulados em torno da defesa da reforma psiquiátrica depois que ela passou a ser alvo de iniciativas de desestabilização a partir de 2006.

Oriundos das mais diversas categorias profissionais do campo da saúde mental, habituados a ambientes onde convivem com a crítica e a auto-crítica adotam a defesa como estratégia de jogo.

Entretanto, com a crescente ofensiva da contra-reforma, conscientes da familiaridade de que os ditos são portadores de um não dito, resolveram enfrentar a forma empobrecida com que a história da reforma psiquiátrica e seus percalços vem sendo comunicadas para a opinião pública.

Ao tom agressivo dos inimigos da reforma psiquiátrica brasileira, respondem com o blog Em defesa da Reforma Psiquiátrica. No país do futebol, sabe-se que em certas circunstâncias a melhor defesa é o ataque.

Do ponto de vista ético, não querem induzir o leitor a falsas alternativas surgidas da radicalização das polaridades, dado o caráter inconcluso da reforma psiquiátrica. Sabem aonde o sapato aperta. No entanto, não aceitam a miopia sobre a singularidade da história da reforma psiquiátrica brasileira, e nem que sobre ela recaia o manto do esquecimento.

Dirigem-se a todas as geracões, mas é sobretudo às mais jovens que reafirmam a condição de militantes da reforma psiquiátrica rumo a uma sociedade sem manicômios.

Acreditam que devem avançar para além da atual interpretação do mundo da reforma. Conscientes da validade da sua palavra e das suas práticas sociais, o que os credencia é o enfrentamento histórico contra o totalitarismo ideológico e suas máquinas produtoras de certezas.

"Em defesa da Reforma Psiquiátrica" tem apenas um consenso, o de que nesse espaço vale a diversidade, a pluralidade e a polifonia das vozes que recusam os anacrônismos de ontem, de hoje e de sempre.